anora me diz que nem toda liberdade é uma escolha, e nem toda escolha é liberdade
“Anora” é um filme sobre sonhos vendidos em um piscar de olhos e arrancados na mesma velocidade. não é sobre amor, nem sobre ascensão social, nem sobre redenção. é sobre a ilusão de que existe uma saída para quem sempre foi vista como um meio para um fim e nada além disso. Anora, ou Ani, como prefere ser chamada, é uma stripper russo-americana de 23 anos que trabalha sete dias por semana. e se existe um tema que percorre durante todo o filme, é o fato de que o trabalho que ela faz não é visto como um trabalho de verdade, sendo assim, nem ela é vista como alguém real.
há um tipo de brilho que não vem da luz, mas do olhar de quem observa. o filme parece começar com essa perspectiva de que Ani é uma estrela nos olhos de quem a compra. ela reluz porque é assim que esperam que ela seja vista, na penumbra do clube, na euforia das festas, na ilusão projetada pelo seu corpo, de um palco que a coloca no centro apenas para que possam consumi-la. no tarot, o arcano maior “A Estrela”, simboliza esperança, renascimento, otimismo, mas também significa ilusões, idealizações e falsas esperanças, da mesma forma que essa história se conduz e Ani representa ambos lados dessa carta, na minha opinião.
o que diferencia Anora de tantas histórias sobre trabalhadoras sexuais é que ele não tenta romantizá-las, nem demonizá-las. Sean Baker não pinta Ani como uma vítima inocente das suas escolhas, nem como uma femme fatale manipuladora. ela simplesmente existe, tentando sobreviver em um mundo que não se importa com mulheres como ela. o filme não tá interessado em contar uma história de superação. pelo contrário, ele mostra como, para certas pessoas, a mobilidade social é uma miragem — algo que pode ser vislumbrado, mas nunca alcançado.
a história começa quando Ani conhece Vanya, um jovem oligarca russo de 21 anos que não fala inglês muito bem e se deslumbra com ela. Vanya não conhece as dificuldades da vida real; nasceu cercado de privilégios e vive sem consequências. ele não tem uma ideia real de quem Ani é – para ele, ela representa um fetiche, um papel e uma fantasia. e talvez Ani também veja nele algo semelhante: uma oportunidade, um momento de fuga e um delírio temporário. ele oferece 15 mil dólares para que ela seja sua "namorada safada" por uma semana, e ela aceita.
o que acontece a partir daí é um conto de fadas distorcido. festas, drogas, dinheiro fácil, uma paixão impulsiva que culmina em um casamento relâmpago em Las Vegas. mas o conto de fadas dura pouco, porque não foi feito para durar. quando os pais de Vanya descobrem, a engrenagem do mundo real se move rápido para corrigir o "erro". até porque, um casamento com uma stripper não é aceitável para uma família bilionária russa. é nesse momento que o filme mostra o que realmente quer mostrar: Ani nunca teve controle sobre sua própria história, ela só acreditou que tinha.
quando os empregados dos pais de Vanya chegam aos Estados Unidos para resolver a situação, vemos dois personagens que simbolizam perspectivas opostas. um deles é “Igor”, um homem de poucas palavras, mas de uma presença significativa. ele não parece enxergar Ani como o resto dos personagens enxergam. e eu acho que é por isso que, a partir do momento em que ele entra em cena, o filme muda. ele passa a ser contado de forma diferente, como se, pela primeira vez, alguém estivesse realmente vendo Ani– não como um objeto, não como um problema a ser resolvido, não como uma “puta”, mas como uma pessoa.
há um momento crucial, quando os pais de Vanya vão pessoalmente resolver a situação e precisam pegar um avião para Las Vegas com Ani e Vanya. nesse momento, Ani se recusa a anular o casamento e sugere que pode buscar seus direitos legais, e então a mãe destrói qualquer ilusão de escolha que ainda restava. ela não precisa gritar ou ameaçar explicitamente. apenas diz, com uma frieza cortante, que, se Ani insistir, sua vida será destruída. a cena corta, e no instante seguinte, Ani já está no avião. o filme não precisa mostrar mais nada. naquele momento, fica claro que nunca houve opção para ela.
e é isso que Anora escancara de forma precisa: o poder sempre esteve nas mãos de quem já nasceu com ele. mulheres como Ani podem ser desejadas, podem ser compradas, podem ser consumidas, mas nunca poderão existir fora do papel que lhes foi designado. a sociedade tolera as trabalhadoras sexuais enquanto elas permanecem dentro dos limites invisíveis que foram traçados para elas. mas basta um passo fora da linha, e a máquina se encarrega de lembrá-las do seu lugar.
Mikey Madison é uma atriz espetacular, Anora é um filme excelente. Apesar de podermos enxergar que o filme aborda a realidade de classes e diferenças sociais, acredito que não passe de uma abordagem mais superficial, diferente do que muitos falam.
acho importante deixar minha opinião sobre isso clara, porque não acho que isso torne o filme melhor ou pior, mas também não acredito que ele é uma grande referência quando se trata dessa pauta, pois o que temos no filme é um olhar mais superficial da desigualdade de classes. novamente, isso não interfere nada na narrativa do filme e em seu propósito. nem todo filme precisa trazer profundas abordagens sobre pautas. apenas abordagens justas e coerentes, e nisso Anora não falha.
Ani não termina o filme como uma mulher que aprendeu uma grande lição ou encontrou uma nova esperança. na cena final, quando está com Igor no carro, algo muda. pela primeira vez, o instinto automático de performar, de se moldar ao desejo do outro, falha. quando Igor tenta beijá-la, Ani reage com violência. e então, pela primeira vez, ela chora e ele a acolhe. ali, não é mais Ani, a stripper, a namorada temporária, a mercadoria de luxo. é Anora.
e talvez seja essa a maior tragédia: no fim das contas, nem mesmo o espectador sabe muito sobre Anora. tudo o que vimos foi Ani, a projeção, a persona criada para sobreviver em um mundo que nunca a enxergou de verdade. e o que resta, no final, é apenas um abraço, um momento de conforto em um mundo que não oferece muito mais do que isso.
amei q miudezas tá fazendo várias reviews de filme!!! tive uma catarse assistindo anora. é lindo demais esse filme affff #SeanBakerTeAmo